Esta Crónica foi modificada em 17.08.2014 para a introdução de duas fotos de Helder Esménio.
Estava-se pelo dobrar do século XX, ali mesmo juntinho à boca da vala, no lado direito, existia uma propriedade da família Roquette, com uma grande plantação de vinha.
O rendeiro vitivinicultor, José Lino, todos os anos, dava trabalho a um rancho de mulheres. Uns metros acima, mesmo na entrada do Bico da Goiva, onde as águas do rio Tejo, e as da Vala Real se encontravam existia duas construções em madeira – eram as casas de dois casais de pescadores; Na família do Ti, Padinha do Vau, havia dois filhos, a Florinda e o João. A Ti Laura Soizeira, era a outra família, que também tinha dois filhos;. Um rapaz e uma rapariga, esta de nome Olinda. Muitos anos depois, a Florinda, casou com um pedreiro da vila, que veio a ser empreiteiro em Setúbal, e o irmão João Padinha, casou com a vizinha Olinda.
O rapaz, da Ti Laura, quando jovem adolescente, passou a ser um visitante assíduo das cadeias, tinha entrado numa quadrilha de assaltantes de galinhas e gado.
A vinha, tinha estado em repouso desde Setembro passado, época da última vindima. As cepas, precisavam agora de poda, para iniciarem um novo ciclo de vida. Aqueles dias de Inverno, eram iguais a tantos outros, nada mudara. Ainda a claridade, estava longe de dar sinais, já em muitas casas se ouvia os galos cantar, como se fossem um relógio. Nas ruas de Salvaterra, as mulheres gritavam, umas pelas outras. De porta em porta, como “ratazanas” em correria, lá iam aparecendo, o tempo bem visto andava aí pelas 5 horas da madrugada.
As mais jovens com os filhos, pela mão, ou ao colo, juntavam-se ao grupo na ponte da vala real. O frio e o nevoeiro continuavam havia alguns dias, não ajudando nada a caminhada a pé pelo valado, até à Boca da Vala. Minha mãe, tinha-me feito para usar nas mãos, uns adornos, de umas meias já muito usadas, onde cortara a parte da frente, para que os dedos ficassem livres. As outras crianças, usavam o mesmo agasalho, que nos assentava que nem umas luvas.
Quando o sol dava sinais de si, já todo o rancho estava a iniciar o trabalho, o capataz, conhecido pela alcunha do "Ramo em Pé" não era homem de esperas. A rapaziada, era sentada, em volta de uma fogueira feita com vides (pequenos ramos, das videiras, em época de poda). A “rainha” mandara atear, o lume que viria a servir pelas 10 horas, tempo em que uma mulher mais velhota, começava aquecer, no Cambariche, as pequenas panelas de esmalte azul, algumas já muito descoloridas,por tanta queimadura, com a comida para o almoço. A refeição durava uma hora,tomada em grande pressa, pois o tempo era escasso e tinham de cuidar também dos filhos. As companheiras, que não tinham ali os filhos davam uma preciosa ajuda. O almoço muitas vezes era uma saborosa sopa, feita um ou dois dias antes para a ceia)(1). Alguns homens, aproveitavam o lume e ali faziam o agora famoso "Torricado". Cortavam um pão de quilo já duro, ao meio,faziam com a navalha,pequenos quadrados,espetavam-no numa vara que verga-se (de salgueiro, ou de marmeleiro) e, a uma distância, que num lume brand o pão torrava até aloirar levemente. Este era depois, untado com toucinho cozido, azeite ou alguma sardinha assada. Era por vezes o almoço dos trabalhadores rurais.
A pequena Olinda, desde a nascença dificiente num pé, brincava mais com as raparigas. Os rapazes, à falta de outro entretém, escolhiam como alvo um pequeno aramado, que servia de capoeira, dos galináceos da Ti Laura. Um galo de grande porte, daqueles com cores; verde, azul e avermelhado, com uma crista bem vincada, que pedia meças a um pedaço de carne, pendurado debaixo do bico. O bichano, defendia com galhardia o seu espaço, dando grandes saltos, de peito em riste e, com as patas em sinal de ataque, mostrando as unhas, fazia-nos desertar para longe da contenda. As duas famílias, pescavam em pequenos barcos varinos(conhecidos por bateiras),nas águas do Tejo e, a venda do peixe era feito no cais da vala de Salvaterra de Magos. Ali estavam sempre dois guardas-fiscais, do Posto daquela polícia, sediado num edifício junto ao Fontanário do antigo Largo de S. Sebastião.
A Ti Laura, tinha de remar durante horas a fio, para colmatar todo aquele esforço, afogava-se nos no vinho, cuja garrafa tinha sempre à mão. Então ouvia do marido; Bebe… Bebe… Laura, que és um homem aos remos.
O povo rural, depressa passou a usar aquela forma doentia de incentivar um esforço de trabalho, especialmente por uma mulher. Muitas e muitas gerações já passaram, ainda aqui e ali se ouve em Salvaterra de Magos, esta “bizarria”. Bebe, Bebe, Laura…! És um homem aos remos.
(1) - Sendo uma refeição que se comia em toda a Leziria ribatejana, a sopa; era composta de feijão branco, ou vermelho, couve,batata,cenoura,uns pedaços de carne de porco e algumas rodelas de chouriço preto e outras do encarnado e às vezes uma farinheira * Nos tempos modernos é servida, na restauração como: Sopa da Pedra *
JOSÉ GAMEIRO